Pesquisador do Observatório fala sobre intolerância na internet

O coordanador do Observatório da Mídia Edgard Rebouças foi entrevistado pelo jornal A Gazeta (22 Out. 2017) em matéria sobre fenômenos de intolerância que estão ocorrendo. Segundo ele, a facilidade de acesso às redes sociais tem feito com que ocorra uma disfunção do processo comunicacional. Exatamente em um espaço onde deveria haver mais diálogo, há conflitos e distanciamentos.

Leia a no link para o jornal e abaixo a ítegra da matéria redigida em co-autoria por Mayra Scarpi (ex-bolsista do Observatório).

 

Intolerância: o Brasil está à beira de 2018 ou do século 18?

Intolerância política, religiosa e social pode atrapalhar o país

 

Desde o agravamento da crise política e econômica no país, um quê de radicalismo vem ganhando espaço nos discursos da sociedade, reverberado sobretudo nas redes sociais. Mas em pouco mais de um mês, decisões do poder público que afetam a vida prática da população surpreenderam por alterar, com intolerância, questões que eram tidas como resolvidas, superadas.

A sensação, para muitos, tem sido de que há uma sequência de retrocessos que mais parecem empurrar o Brasil para o século 18, e não para 2018. Em algumas instâncias, predomina o discurso da verdade absoluta e intolerância com outras visões e crenças, que leva a algo perigoso: a censura. De pensamento, de expressão e de comportamento.

No início de setembro, uma exposição de arte foi cancelada em Porto Alegre após protestos e ataques nas redes sociais e ao próprio museu. Os autores das agressões – que não se restringiram a simples críticas – consideraram a mostra um “incentivo à pedofilia, zoofilia e contra os bons costumes”. Foi o precedente para iniciar uma série de protestos e vetos a manifestações artísticas pelo país.

Uma semana depois, um general do Exército saiu publicamente em defesa da intervenção militar no país, como solução para enfrentar a crise. Dias depois, o discurso ganhou eco por meio de outro membro das Forças Armadas.

Na sequência de manifestações polêmicas, para dizer o mínimo, um juiz do Distrito Federal concedeu uma decisão provisória que, na prática, torna legalmente possível que psicólogos ofereçam terapias de reversão sexual, popularmente chamadas de “cura gay”. A decisão causou tanto uma onda de indignação, quanto uma onda de apoio popular.

No fim do mês passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é permitido que a aula de ensino religioso seja vinculada à crença do professor em escolas públicas. Por fim, nesta última semana, o governo federal editou uma portaria que dificulta a comprovação e punição do trabalho escravo.

E agora?

Vista por estudiosos como uma onda conservadora, este fenômeno não é exclusividade do Brasil.

“Há um movimento internacional que ganhou maior visibilidade após a crise de 2008, em que países começaram a barrar a imigração, rever tratados de livre comércio. Houve o crescimento da extrema direita na França, Áustria, e agora na Alemanha, onde um partido de extrema direita não entrava no parlamento desde 1945. Sem esquecer de Trump, nos EUA, que prega a América em primeiro lugar, e o não conviver, pois o outro é o culpado pela crise”, aponta o doutor em História Pedro Ernesto Fagundes.

O cientista político Fernando Pignaton encara esse momento como uma crise da democracia no mundo: “Temos um quadro geral de desigualdade social e a democracia não deu passos a frente em termos de ganho de qualidade. Ao polarizar a luta desses excluídos por uma melhora, abre-se espaço para ressonâncias autoritárias e extremismos. Vemos isso no Oriente Médio, na Ásia. Há hoje o populismo tanto de esquerda, quanto de direita”, defende.

Motivos

Afinal, esse traço da sociedade brasileira está aumentando ou sempre existiu? Para Fagundes, a associação entre a crise política e econômica fez com que grupos que se indignavam em nome de uma bandeira ética, ao se depararem com a corrupção generalizada, agora se refugiem na bandeira da moral.

“Há o surgimento de uma nova direita, que quer apresentar soluções fáceis e rápidas. Com a falta de diálogo que há hoje, esse grupo surfa em toda essa discussão e acaba, através do não debate, tentando convencer uma parcela da população que está cansada, e acaba aderindo a essas ideias”, afirma o professor.

Discurso de ódio

O doutor em Comunicação Edgard Rebouças verifica que os discursos de ódio sempre existiram, mas hoje são potencializados pelos meios de comunicação.

“Conforme a teoria da espiral do silêncio, para as pessoas não se sentirem de fora, acabam concordando com certas opiniões, mesmo não tendo um ponto de vista formado. Acabam indo na marola dos acontecimentos, sem refletir. Não querem ouvir o discurso contrário. Defendem uma opinião sem debater”, analisa.

Além disso, o filósofo e doutor em Ciências da Religião Edebrande Cavalieri lembra que a defesa da moral está por trás da maioria desses debates, e que no fundo acaba sendo misturada às crenças religiosas. “Me preocupa que políticos com posturas fundamentalistas ganhem espaço, o que será um desastre para a democracia”, aponta.

Iniciativas

O problema se amplia quando iniciativas intolerantes são transportadas para a legislação, significando, muitas vezes, a perda de direitos para determinados grupos, frisa o doutor em Direitos e Garantias Fundamentais Américo Bedê.

“Todo radicalismo é perigoso, temos que aceitar o pluralismo. Temos uma democracia recente, e ela precisa ser cuidada e protegida. O problema é um grupo querer determinar que alguém tem que se comportar de determinado modo. A maioria não pode suprimir a vontade das minorias, mas as minorias também não podem querer impor sua visão”, argumenta.

Ele lembra que até mesmo o conceito de Direitos Humanos acaba sendo usado de forma distorcida nesse ambiente de radicalismos.

“Os Direitos Humanos são uma proteção que o indivíduo tem contra a arbitrariedade do Estado, e não há uma incompatibilidade entre punição e respeito a direitos fundamentais. Eles valem até para aqueles que não acreditam neles”, diz.

O historiador Pedro Ernesto ressalta que esses setores têm direito a ter essas ideias, mesmo que sejam radicais e excludentes, pois isto é a democracia. Contudo, a defesa à ditadura, por meio da intervenção, é algo condenado pela Constituição e não pode ser admitido.

“Se fôssemos nos comparar a uma época, vivemos algo semelhante ao pré-1964: tempos de intolerância política somada à ideia de intervenção militar. Lá, isso culminou em um golpe. Agora, não sabemos o que o futuro nos reserva”, disse.

O caminho para reforçar a democracia é promover o reencantamento com ela, através de um aprofundamento de participação popular, para Fernando Pignaton. “É necessário tanto em termos globais, como locais. Enquanto isso não chega, a crise não acaba”.

 

O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS

O peso das redes sociais

Os discursos de ódio sempre existiram, mas são potencializados pelas redes sociais. Anteriormente, eles ficavam restritos ao âmbito da comunidade, da família, da escola, da igreja. Agora, as redes tornam os discursos públicos e os fazem atingir mais gente. Embora elas ofereçam a possibilidade de diálogo, estão sendo usadas para brigas. As pessoas não querem ouvir o discurso do outro e defendem uma opinião sem debatê-la. Elas vieram para aproximar, não distanciar. O meu medo é que as pessoas se tornem cada vez mais radicais, sem se abrirem ao diálogo e se fechando em um grande grupo. Usando as formas de comunicação de um modo errado, a sociedade pode caminhar para a barbárie.

Edgard Rebouças, doutor em Comunicação Social

 

A presença dos militares na política é página virada

Temos que aceitar o pluralismo de ideias. Mas vejo que temos hoje os direitos fundamentais sob ameaça. Enquanto os pedidos de intervenção militar estiverem só na fala é menos grave, apesar de não ser permitido juridicamente. O problema é se articularem movimentos para concretizar essa intervenção. A sociedade precisa entender que esta página está virada, ter consciência que os militares são importantes para a nação, mas não são eles que devem comandar a política.

Américo Bedê, doutor em direitos e garantias fundamentais

 

Democracia brasileira em risco

Uma nova direita aflorou no Brasil após as eleições de 2014 e toma essa posição conservadora por questões eleitorais. Inicialmente, ela se articulou em nome da bandeira ética. Ao aparecer a corrupção generalizada, também no governo Temer, passou a se refugiar na bandeira moral. Esse grupo político é bem articulado em torno de suas ideias, e por trás dele está quem não quer o diálogo. O que está em risco verdadeiramente é a continuidade da democracia brasileira.

Pedro Ernesto Fagundes, doutor em História e professor da Ufes

 

Escolas precisam ensinar um mundo plural

O Brasil está retrocedendo. A decisão do STF representa um retrocesso incompatível com o Estado Democrático de Direito. Escola não é lugar de explicitar a fé. Isso mostra a incompreensão do lugar escola. Precisamos nas escolas do ensino de convívio ético em um mundo plural. Esse tipo de decisão alimenta a intolerância religiosa em um país tão diverso como o nosso. A imprensa tem um importante papel neste momento de alimentar a democracia e disseminar o senso crítico.

Edebrande Cavalieri, doutor em Ciências da Religião

 

Por um reencantamento com a democracia

O surgimento de pensamentos regressivos, em termos mundiais e no Brasil, é recorrente toda vez que há uma crise profunda na sociedade, que vive um momento de frustração. A democracia precisa ser reinventada, recuperar sua capacidade de atração, pois hoje está defasada em relação à atuação das forças do mercado. As forças que defendem a democracia, a inclusão e a mudança social precisam se reaglutinar para que ela seja mais moderna, participativa, capilarizada, esse é o caminho.

Fernando Pignaton, Cientista político

 

EXEMPLOS RECENTES DE POLÊMICAS

1 Censura às artes

Uma mostra de arte foi acusada de expor pedofilia e zoofilia. Dias depois, o alvo das agressões foi uma performance artística na qual um ator nu interagia com o público.

2 “Cura gay”

Uma decisão judicial autorizou psicólogos a oferecerem terapia de "reversão sexual" – popularmente conhecida como "cura gay" – sem que sejam punidos pelo Conselho Federal de Psicologia.

3 Ensino Religioso

O STF decidiu que o ensino religioso em escolas públicas pode ser confessional, ou seja, pode promover crenças específicas, sem ferir o Estado laico.

4 Intervenção Militar

Generais do Exército defenderam publicamente a intervenção militar no país para solucionar o problema político.

5 Trabalho escravo

Esta semana, o governo federal publicou uma portaria afrouxando o conceito de escravidão contemporânea.

 

“Há no Brasil um vazio que favorece discursos violentos”

A força que o pensamento conservador tem ganhado na sociedade e na política deve trazer reflexos para as eleições de 2018, e dependendo da liderança que encampar esses argumentos, pode significar uma relevante mudança no tabuleiro eleitoral, principalmente para a disputa à Presidência.

Este é o diagnóstico que já é possível ser feito até o momento, de acordo com o doutor em Ciências da Comunicação e professor da USP, Eugênio Bucci. Em entrevista, ele analisa a conexão entre os retrocessos recentes, a reação dos discursos adotados por pessoas e lideranças e os impactos para o próximo ano.

Estamos caminhando para 2018 ou para o século 18?

Existem elementos no cenário político brasileiro que devem ser vistos em conjunto, pois guardam uma conexão entre si. Eles são indícios de uma mentalidade conservadora, que se expressa especialmente no campo dos costumes, com ideias de censura ou restrição. No campo da política, se manifesta com o recrudescimento de demandas e discursos pleiteando um regime mais autoritário. E nas questões de trabalho, na relação entre trabalho e capital, com um descaso em relação às pessoas que ficam na base da cadeia produtiva.

Que reflexos essas questões podem trazer para as eleições de 2018?

O primeiro reflexo que a gente já percebe é o crescimento de possíveis candidatos com um discurso retrógrado, com uma retórica mais violenta. Que afirma que a violência pode resolver os problemas da democracia, ou que as artes são expressão de uma degeneração dos costumes e da família, e que tende a chamar movimentos de reivindicações de trabalhadores de baderna e arruaça de gente preguiçosa. Deve haver ainda mais uma certa desinibição desse tipo de oratória. Antes as pessoas tinham vergonha de falar esses tipo de coisa, pois demonstra um desprezo pela liberdade, pela paz e pelo trabalho e pelo trabalhador. Mas deixaram de ter, e as consequências vão aparecer.

A bancada BBB (boi, bala e Bíblia) aumentou o seu poder?

Pode ser que a composição do Congresso Nacional na eleição do ano que vem seja reconfigurada. Mas se essa onda persistir, teremos mais gente que defende esse tipo de postura. Mas existe uma associação que normalmente se faz e que deve ser relativizada: entre a mentalidade conservadora e políticas de direita. Esses movimentos têm um jeitão, uma aparência de uma direita reacionária, e em boa medida são isso mesmo. Mas a classificação do que é direita e do que é esquerda pode se perder nesses estereótipos. Há políticos de direita totalmente contra essa mentalidade e podem existir políticos de esquerda que vão fazer aliança com ela.

2018 será um ano em que a fé vai subir ao palanque e a farda vai conspirar contra o palanque?

Existe uma incógnita para 2018. Os setores religiosos organizados no Congresso, boa parte deles ligados a igrejas evangélicas, vai ter um candidato próprio ou não? Existe algum grande líder que poderia unificar essas religiões e ter um candidato? Se isso acontecer, o tabuleiro de 2018 vai mudar. Até agora as pessoas estão considerando que toda essa força social cristã e não católica, que reúne massas expressivas, vai atuar apenas como cabo eleitoral de outros candidatos. Mas no Rio eles lançaram candidato próprio, que foi o Crivella. E se isso acontecer no plano nacional? É possivel que a mistura entre religião e política seja mais profunda em 2018 do que foi até agora no Brasil. O outro aspecto são militares de alta patente falando que intervenção militar seria legítima, mesmo que não seja legal. Aí nós temos um caminho que, se levado ao extremo, significa que não haverá eleição em 2018, vão interromper o curso democrático. Eu não acredito que a sociedade brasileira e as instituições vão aceitar coisas desse tipo. Mas é incrível como cresce o número de gente falando que talvez isso seja bom.

Por que principalmente jovens e pessoas altamente escolarizadas são levadas a adotar esses discursos?

Há um desgaste monstruoso dos nomes dos políticos, mas também da função política. Ela, independente do partido, acabou ficando com uma imagem muito comprometida com a corrupção. Como se político fosse sinônimo de corrupto. Isso começou com uma desmoralização da esquerda, que hoje é de toda a política. Outro ponto é a ausência de alternativa. São pouquíssimos nomes que despontam, podem representar uma renovação. Nessa cultura, fica uma percepção de que a democracia não dá conta de oferecer alternativas para superar seus próprios males. Cria-se um vazio que favorece o surgimento desses discursos autoritários e violentos.

O que a população contrária a essa visão pode fazer?

A receita é não desanimar, não se desmobilizar e não deixar qualquer um lançar mão do Brasil. Além disso, votar em candidato honesto. Dá para saber quem tem parte com malfeitos e quem não tem. Tem muita gente que é contra a corrupção, mas que a tolera em seu campo político. Então, aqueles que ainda acreditam em mudança não podem se desmobilizar, deixar de ter sua participação política.

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